Nascido no século XX, pré Segunda Grande Guerra, o aikido é uma arte marcial que promove muitos debates e controvérsias diante daquilo que se pretende ser e daquilo que se fez dele. Polêmicas estas que não cabem aqui descrever em detalhes, mas que merecem uma investigação cuidadosa nas biografias dos primeiros alunos e familiares de Morihei Ueshiba. O’sensei, por si só, já carregava um fardo pesado de mal entendimento daquilo que pronunciava e do que fazia. Relatos dos seus alunos diziam que o mestre falava através de comparações místicas acerca de princípios do aiki e do caminho que ele vinha estabelecendo atravéz da prática, caminho este que como na prosa de Jorge Luis Borges, seguiu por diversas veredas que continuam a bifurcar-se. O passado conturbado de Ueshiba, de engajado religioso e ativista anti-imperialista foi transliterado à uma pífia personagem monástica ou eremita, que encontrara o satori depois que se refugiou no campo. Ledo engano essa redução, visto os históricos embates de Ueshiba com as autoridades japonesas, as vezes mediada e suavizada pelos próprios alunos (esses que também ocupavam cargos nas forças armadas e braços do governo).
Recentemente, foram publicados os livros de dois dos alunos mais chegados de Morihei Ueshiba das primeiras turmas: Gozo Shioda e Sunadomari Kanshu, fundadores das escolas Yoshinkan e Manseikan, respectivamente. Ambos relembram passagens impactantes e frases ainda mais memoráveis de O’sensei, enfocando características díspares da personalidade do fundador da arte (de desafiador e impetuoso à manso e de espirito elevado). Tal diferença é nítida na leitura das duas obras assim como era nítida a diferença do aikido que conservou-se através daqueles dois grandes senseis, Shioda e Sunadomari, este último preservara muito daquele misticismo vivenciado ao lado de Morihei Ueshiba, o qual foi visitado por O’sensei diversas vezes depois da Segunda Guerra, compartilhando juntos a devoção pelas práticas da Omoto Kyo. O próprio sensei Morihiro Saito relata algumas dessas viagens de peregrinação de O’sensei, se ausentando algumas semanas durante o ano. Podemos dizer que, em uma superficial comparação, enquanto a escola de Iwama preservou o corpo do aikido (em relação à técnica), a escola de Sunadomari preservou o espírito (a mística atrelada a Omoto Kyo). Outro relato que merece um atento olhar sobre essas controvérsias pode ser encontrado no texto investigativo e um tanto iconoclasta de Stanley Pranin, intitulado “Será Que O’Sensei é Mesmo O Pai Do Aikido Moderno?” (traduzido para o portuguê por Pedro Escudeiro e Renata Gomes de Jesus, aikidojounal). Neste texto, Pranin relata as atividades constantes e as ausências que O’sensei deixara tanto no Hombu Dojo quanto em Iwama e que muito do aikido moderno que hoje é visto deve-se ao esforço de Koichi Tohei sensei e de Kishomaru Ueshiba, sucessor da linhagem.
A querela é tanta que muitos dos antigos alunos de O’sensei possuem explicações diferentes para a vasta proliferação de estilos e métodos de aplicação do aikido. De fato, muitos relembram da incansáveis analogias místicas do aikido e de advertências feitas por O’sensei quanto ao espírito da espada presente no aikido, embora essa questão não fosse muito bem esclarecida. Qual escola de kenjutsu de fato estaria em acordo com aquilo que O’sensei se referia ao clamar o espírito do aikido? Alguns mais próximos diziam ter provas de que O’sensei baseou-se para compor o currículum de aiki-ken e aiki-jo na experiência adiquirida através do meikyo kaiden da escola de Shinkage ryu, possivelmente dada a ele por Sokako Takeda, outros dizem que se tratava da escola de Kashima Ryu, influência próxima de Ueshiba principalmente após a frequente visita de professores dessa arte ao seu dojo Kobukan, em Tókio dos anos 30 (2 anos ou menos). Trantando de Takeda, já foi largamente debatido a questão do DaitoRyu Aiki Jujutsu e o aikido, abrindo o leque para inúmeras interpretações sobre o que separou os dois grandes mestres e o que distingue uma corrente da outra. Com certeza, não é a questão do treino de armas no aikijujutsu, pois este possui, no escopo de algumas das escolas, treinos em tachi waza e jo waza, assim como o aikido. Pranin descreve que O’sensei dividia as turmas segundo turnos, onde o treino de armas era privilégio das turmas diurnas. Tohei sensei conta que dos uchideshi de O’sensei, somente Shoji Nishio possuia formação em armas, inlcuindo iai do e muso shito-ryu jodo, enquanto os demais só conheciam o currículum básico obrigatório nas escolas japonesas (quando muito). Complica ainda mais essa questão ao ouvirmos relatos quase míticos de que O’sensei passava conhecimentos secretos aos alunos mais chegados (conforme relatado por Saotome sensei) ao se referir aos katás de lança e uma suposta instrução de Naginata à uma artista japonesa, cujo processo teria sido “recebido” a partir de meditação na montanha e consulta aos textos clássicos.
O que ficou de O’Sensei, afinal? Essa questão está presente no artigo de Pranin e outras perguntas que ressoam até hoje. O método de ensino de O’sensei foi publicado anos atrás sob o nome de Budo, com acrescimos de comentários de Kishomaru Ueshiba. Tal material conserva muito dos primeiros estudos do aikido e, conforme comparação do que temos hoje, próximo daquilo ministrado em Iwama na época de Sensei Morihiro Saito. As práticas de aikitaissu presentes no filme de 1938 e outras práticas de abertura dos treinos e liturgias foram transformadas com o passar dos anos, além de muitas outras derivações pertinentes aos olhares dos instrutores. As longas meditações e orações da Omoto Kyo e os extensivos treinos de Kokyu (respiração), esses também foram relegados à poucos momentos de um treino, ainda assim em escolas mais tradicionais. O próprio caráter anti-imperialista foi apagado da sua história em prol daquilo que interpreto como um processo de acomodação do aikido como arte nacional japonesa.
O Aikido é uma arte dinâmica e ainda atual, é natural se observar transformações ou interpretações sobre tecnicas e metodologias. Faz-se necessário observar que todo método que mereça crédito enfoca a sua pesquisa no desenvolvimento do praticante, tanto fisicamente, quanto mentalmente, ou seja, se por um lado desenvolve um ambiente de bem estar físico e mental, também prepara o indivíduo para responder com tranquilidade e presteza a situações de marcialidade ou agressões de qualquer natureza.
(por Leonardo Galvão)
Bibliografia
SHIODA, Gozo. Aikido Shugyo: Harmonia no Confronto. São Paulo: Ed. Pensamento.
SUNADOMARI, Kanshu. A Iluminação Através do Aikido. São Paulo, ed. Pensamento.
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