AS MULHERES NO AIKIDO

Por Bete Romanzini*

Abaixo, reproduzimos um texto muito interessante de Bete Romanzini sobre a participação das mulheres no aikido. P texto foi enviado por um amigo a nós e pedimos a ela que pussemos reproduzi-lo. Ela não só nos autorizou esta reprodução como mandou uma atualização deste, que acrescenta uma visão alguns anos depois sobre o assunto, focando nas mudanças que ocorreram ao longo do tempo nos dojos segundo ela pode vivenciar. Agradecemos sua pronta resposta e sua amabilidade. Espero que seja enriquecedor a todos, especialmente nossas alunas, iniciantes, sempai e yudansha.

Alguns anos atrás escrevi um artigo sobre as mulheres no Aikido. Questionava porque poucas mulheres se interessavam por artes marciais. Sendo mulher, sempre pensei que atrairia mulheres para o treino. O que não aconteceu. Isso foi lá em 2002, nos primeiros momentos como instrutora de Aikido. Hoje, mais de 10 anos depois, a situação está muito diferente. Atualmente, o dojo está dividido igualmente entre homens e mulheres. Mudei eu? Mudaram as mulheres? Mudou o mundo? Provavelmente, mudaram todos esses fatores. A verdade é que as mulheres estão sendo maioria em quase todas as áreas, a não ser nas engenharias, me diz alguém. Anos atrás, as mulheres chegavam tímidas, e só as muito determinadas prosseguiam o treino. Agora, elas chegam mais seguras. Sabem o que querem, dominam a timidez, são humildes e educadas, inteligentes e aplicadas. E não tem medo de assumir o compromisso que o treino exige. As mulheres são extremamente confiáveis no tatame. E através dos anos de treino, se tornam mais seguras e eu diria, até mesmo, mais bonitas. Não, Aikido não embrutece nem o corpo nem a mente. Não, Aikido não é uma coreografia. Não, Aikido não é uma dancinha. Não, Aikido não é um exercício para os fracos. Aikido equilibra a energia, a masculina e a feminina, tonifica o corpo, higieniza a mente, cria empatia com os outros, organiza muito saudavelmente as emoções. Aikido desenvolve valores de honestidade e contentamento, que são valores positivos para os humanos. Aikido ensina a confiar em si mesmo e nesses valores, seja homem ou mulher. A origem das artes marciais foi a necessidade de defesa de uma sociedade, um vilarejo, de um grupo ou indivíduo fracos, que precisavam se defender contra os ataques de alguém mais forte, ou de algum invasor. Esse papel de defesa de si mesmo e dos seus, sempre foi dos homens, as mulheres permaneciam na retaguarda, cuidando das crias. Quando conheci o Aikido, um processo muito interessante de liberdade teve início. Tive a grande sorte de encontrar Kawai Sensei. Para ele, não havia diferença entre homem e mulher, ele respeitava a fisiologia de cada um, independente de sexo. Mas Kawai Sensei também não fazia nenhuma diferença de idade, condição social, cor da pele ou qualquer outra condição. Para ele, era possível que todos treinassem. Para entender e superar minha condição cultural de ter nascido no Sul, pois aqui os homens historicamente dominam a cena, foi muito importante viajar e conhecer o Aikido na Europa, por exemplo, onde as relações são mais igualitárias. Conviver em outros dojos, perceber as inúmeras possibilidades, independente de ser homem ou mulher, ajudou muito a estabelecer a confiança necessária para superar meus próprios preconceitos, além do preconceito alheio. Se você é mulher e aikidoista, já deve ter acontecido de, às vezes, treinando em seminários, encontrar má vontade explícita e aquele ar de condescendência do tipo: “agora vou ter de treinar com essa mulher”. São aqueles momentos onde uma técnica bem aplicada e um ataque forte e correto pode mudar um paradigma. Sim, porque ser uma boa praticante de arte marcial, para uma mulher, ainda é quebrar preconceitos do universo masculino. Acontece direto nesse pequeno dojo: homens fortes chegam para treinar, totalmente convictos em suas enraizadas opiniões sobre o que é “apropriado” para um homem e uma mulher, e se surpreendem muito com a pegada firme, a postura disciplinada, a técnica justa e eficiente das mulheres com quem, sinceramente, eles tem A SORTE de treinar. Sim, porque afirmo que é uma sorte encontrar oportunidades para se livrar de idéias preconcebidas e que não tem mais valor. Não estamos mais num mundo em que apenas os homens mandam, é quase certa a possibilidade de ter um chefe, sócio, colega, ou presidente da república, que é mulher. Com quem é preciso se harmonizar. Mais um ponto em que o treinamento do Aikido pode ajudar na vida fora do tatame. Idéia genial, o Aikido. Possível para todos. Homens, mulheres, crianças, fortes e fracos. Ter encontrado essas boas condições: a arte do Aikido, um sensei inteligente e lúcido, e a convivência com outras culturas, me trouxe estabilidade e a compreensão correta para seguir treinando, e eventualmente treinar outras pessoas. E continuo encontrando boas condições no mundo do Aikido. Encontrei sensei Luis Gentil faz alguns anos. Minha empatia com ele foi imediata. Os japoneses chamam isso de Kimoti. É alguém com quem dá vontade de estar e treinar junto. Demorou vários anos para que se estabelecesse a conexão que temos agora. Um pouco como os vinhos, que têm de ter um tempo de maturação, para ficarem realmente bons. E como os verdadeiros grandes senseis, sensei Luis não tem preconceitos de condição social, cultural, sexo, ou idade. Se alguém gosta de treinar Aikido e quer aprender, é bem-vindo junto dele. Boas condições! Acho que teremos de providenciar um vestiário maior no dojo para as mulheres. Que chegam suavemente, humildes, sinceras e firmes. Escrito em 12 de janeiro de 2005 As mulheres no Aikido Porque tão poucas mulheres treinam Aikido? Existe o fator cultural, que observo muito forte aqui na Serra Gaúcha: as mulheres esperam que ALGUÉM sempre vai lhes proteger dos problemas do mundo. Uma síndrome de dona de casa indefesa. Como se elas não precisassem saber se defender, como se não dirigissem à noite sozinhas, ou não tivessem que dar um chega pra lá em algum abusado. Em geral, as mulheres buscam atividades que lhes dê um corpo sarado, esquecendo que a verdadeira beleza é interna e vem da saúde não só física, mas mental. Daí ficam esses corpos malhados, e uma falta de brilho no olhar. Falando especificamente de dojos de Aikido, e de minha experiência em outros dojos, penso que grande parte da responsabilidade é dos próprios participantes do dojo. A maioria é homem. E quando o sensei do dojo tem idéias esquisitas sobre as mulheres, as coisas ficam muito piores. A historia é antiga. Mary Heiny Sensei, americana que treinou no Hombu Dojo com o fundador, nos anos 60, conta que no Japão, os homens não chamavam as mulheres para treinar. Um dia, o fundador entrou no meio de um treino, fez uma longa dissertação sobre a importância e a qualidade do Aikido das mulheres, e incentivou energicamente a todos para treinarem juntos, não importa se homem ou mulher. Todos ouviram, o fundador partiu, e tudo voltou como estava antes: homens treinando com homens e mulheres com mulheres. Não sei como é atualmente. Se o instrutor do dojo tem uma mente clara sobre esse ponto, o acesso das mulheres será facilitado. Vi isso acontecer com Kawai Shihan. Ele não faz nenhuma diferença psicológica entre os sexos. Fisicamente, sim, ele respeita as mulheres. Mas Kawai Shihan respeita as condições físicas de qualquer pessoa, seja homem ou mulher. Uma vez, lhe perguntei, durante um yudansha, se existiam diferenças entre homens e mulheres no Aikido. Ele foi simples e direto: nenhuma. Todos podem aprender e treinar Aikido. Presenciei muitos fatos nos dojos, envolvendo relacionamentos entre homens e mulheres. Aikido envolve contato físico, sentimentos e emoções. Reações são desencadeadas, e às vezes, mal trabalhadas pelos instrutores. O que causa sofrimento inútil para todos, mas principalmente para aquele lado que é o mais suscetível, aquele lado que projeta no instrutor(a) qualidades que ele(a) está longe de ter. Quando uma pessoa, homem ou mulher, inicia seu treinamento no Dojo, está entrando em um universo diferente, e muitas vezes trazendo um forte pedido de ajuda implícito. Vamos combinar que, se tudo vai muito bem na vida, ninguém se dá ao trabalho de procurar uma prática difícil como é o Aikido. Fica em casa, com a família, se divertindo, tomando vinho, etc… Muitos instrutores de Aikido são na maioria jovens, na faixa dos 25 aos 35 anos, homens, cheios de hormônios e com graduação alta, alguns dans. Muitas vezes, os dans não acompanham a maturidade emocional. Esses homens não sabem muito acerca de seus sentimentos, e só podem fazer o que está ao alcance deles. Isso significa olhar para as mulheres não como um instrutor, mas como um homem. E se um instrutor pensa assim, seus alunos pensam assim também. O clima é insustentável para uma mulher que queira simplesmente treinar, e não namorar ou paquerar. O dojo desse instrutor normalmente não vai ser muito limpo, os dogis são mal cheirosos e suados, o Aikido ali praticado é muito macho! Os homens costumam tirar o casaco do Dogi, no tatame mesmo, logo após o treino, e conversar assim, com os peitorais peludos à mostra. Cheira-se testosterona à quilômetros. Várias vezes ouvi, em alguns dojos onde treinei, comentários jocosos entre senseis, instrutores e alunos (homens, é claro), sobre determinada aluna, ou sobre as mulheres em geral. E esses mesmos instrutores freqüentemente reclamam da ausência feminina no dojo(!!!) E nunca formaram uma mulher faixa preta, apesar de ensinarem há muitos anos. Obviamente existe a responsabilidade de uma mulher saber o que quer, quando entra em um dojo. Se ela estiver consciente do que realmente procura, não vai ter maiores problemas do que fazer de conta que não ouve certas insinuações, mas nada que a impeça de treinar. E nada que não aconteça também nas ruas no dia a dia. É possível, sendo mulher, treinar e gostar de Aikido. E mais: é possível ensinar Aikido, sem misturar as coisas, não importa se homem ou mulher. Mas é preciso um trabalho constante de auto conhecimento para perceber as profundas questões éticas envolvidas num relacionamento onde existe uma ascendência de uma das partes. As relações que envolvem muitas projeções, como médico/paciente, aluno/professor, e cuja responsabilidade maior está sobre aquele que tem essa ascendência. Na maior parte das vezes, o que vi nos dojos, foram relacionamentos onde houve muito sofrimento, e geralmente a parte mais sensível aos danos vai embora com machucados psicológicos e mentais, e totalmente desencantada com o Aikido. Conversando sobre esse assunto com um sensei graduado, ele me diz que o instrutor deve cuidar para ter uma situação familiar estável, cercar-se de afetos entre os seus, e ter firmes princípios éticos de não envolvimento emocional desnecessário com alunos ou alunas. E tem o dojo do inesquecível e falecido Peter Bacas Sensei, da Holanda. Neste dojo, muitas mulheres com graduação alta. Enormes mulheres holandesas, esse povo de gigantes. Bonitas, com Aikido muito feminino e suave, e muito, muito forte. Um clima muito bacana de amizade. Sinto, durante os treinos, seja com crianças ou adultos, que quando há mulheres ou meninas no tatame, o clima se distende. Aumenta a cortesia e a educação. Sem prejuízos à marcialidade. Conheci mulheres no tatame mais marciais do que muitos homens, sem deixar de ser totalmente femininas. Porque Aikido equilibra a energia. Suaviza e fortalece ao mesmo tempo. No Brasil, em alguns dojos, existe um clima muito “macho”. Nestes dojos, as mulheres são olhadas com condescendência, podem realizar tarefas como fazer o chá, dobrar os hakamas, colocar florzinhas, organizar as festas e outras coisinhas, e gravitar em torno desses maravilhosos dans e seus super poderes de atração. Obviamente, concordo que, às vezes, acontecem no tatame relações maduras e que podem e devem ser aprofundadas também fora do tatame, mas é preciso saber muito bem o que se está fazendo, para evitar danos irreparáveis ao dojo, ao grupo, e a si mesmo. Quando falta ética, perdemos todos. O Aikido perde alunas e alunos e perde o sentido de um caminho tão bonito tanto para homens e mulheres ou meninos e meninas. E nós todos perdemos futuros(as) colegas com quem teríamos gostado de treinar.

* Bete Romanzini (3º dan), nascida em 1964, Iniciou Aikido em Porto Alegre. Graduou-se faixa preta em 2002, em São Paulo, com Kawai Shihan. Em Caxias do Sul, desde 2004. Graduou-se 2º dan em 2006. Graduação de 3º dan em setembro de 2011. Instrutora do Tensei Dojo.

 
Bete Romanzini Sensei