Por Leonardo Galvão
A pedidos, resolví botar em palavras aquilo que as vezes converso com meus colegas (e amigos) aikidocas, nada muito diferente do que já nos é conhecido, mas desta vez, ilustrado por mitos universais, reconstruindo os sentidos literais para além das metáforas já descorridas sobre eles e dialogando com princípios como ukemis, atemis, tenkans e irimis. Resolví que, para falar com aikidocas, propensos a equilibrar a tenacidade do espadachin, a diplomacia inteligente de um nobre e a serenidade de um monge (sim, isto é um clichê), nada melhor que assuntar os riscos da velha hybris, que em tantos excelentes heróis fizera as mão fraquejarem e as pernas tremerem.
Hybris é um termo grego arcaico, caiu em desuso, cujo significado era excesso, ou desafio, ou crise provocada por mania de grandeza, fato muito comum nos nossos dias, por vezes até enaltecido. É fácil de entender o que é hybris, basta lembrar da história do piloto de avião já experiente, cansado de fazer operações irregulares com o seu aeroplano e que, um dia não diferente dos outros, é acometido com a fatalidade. O herói é outro conceito arcaico e que sempre volta numa repaginação segundo os moldes da época. Os herois já foram virtuosos, já trouxeram a luz à escuridão, iniciaram a nova ordem, destronaram reis e salvaram as princesas (ou os tesouros, tem o mesmo sentido) da caverna dos dragões e torres inalcançáveis. O herói pode ou não lutar com o mal, contudo o maniqueísmo é um conceito do final do período clássico. Heroismo é outra história.
Ok, ok! Concetremo-nos na questão da hybris, por enquanto. Não nos fatarão exemplos a serem discutidos, assim como não faltam heróis nas histórias mítico-religiosas universais. De sumério-babilônicos a japoneses, da antiguidade as nosssos dias, exímios guerreiros e homens espirituais, uns respeitados pelas proezas e outros temidos pela força de seu braço, sõ que, mais cedo ou mais tarde o forte e o valoroso sempre encontra um desafio intransponível e, este cheio de orgulho, se lance ao inevitável: a derradeira queda.
Se ainda não está claro, vou pincelar alguns exemplos sem me prender no mérito moral, ideológico e cultural de cada um, mas me concetrarei nesse fenômeno que faz o humano verdadeiramente Humano, falo da queda, a imagem do terceiro animal que anda com três patas no enígma da esfinge, vai além da questão da velhice.
Enfim chegado o momento de narrar as epopéias dos guerreiros, me permito ir longe, no berço da civilização, para comentar a primeira narrativa heróica que este Mundo já viu. Refiro-me ao mito de Gilgamesh, um Hércules ou um Sansão primitivo, arquétipo dos heróis brutos e impiedosos, um Wolverine da antiguidade (salvo milhões de aspectos nessa comparação). Suas estórias eram contadas oralmente desde os primeiros reinos sumérios, mas foi no período acádio que as rapsódias foram talhadas em tábuas de escrita cuneiforme, enfim, um mito de força, coragem e crueldade que durante séculos teve seu nome esquecido no tempo e na areia da terra e dos povos que seu nome ajudou a construir. Gilgamesh, rei cruel, conquistador, inquebrantável, cuja tirania fez com que seus súditos suplicassem aos deuses que o fizessem parar. Como toda narrativa arcaica, essa história é construída através das repetições cíclicas, como são cíclicos os dias e as noites, o nascer, o crescer e o morrer e etc, logo imagine quanto fez Gilgamesh para ter seu nome escrito na boca do sapo dos rios mesopotâmicos. Gilgamesh vencia inimigos mortais e até os imortais, armadilhas preparadas pelos deuses anunaki contra ele desferidas, ou seja, nada podia com Gilgamesh.
Para enfim destruir o rei-herói, os deuses anunaki entraram em consenso de que só outro Gilgamesh poderia vencer Gilgamesh, e assim, com o barro negro do Tigre e Eufrates, construiram Enkidu a imagem e semelhança de Gilgamesh. Deixando a análise psicológica do mito, ao encontrar alguem igual a ele em força e aparência, temido nas florestas ao redor de seu reino, este se viu espelhado e insuflado, somando forças com sua contraparte selvagem, motivo que o levou depois à ruina de sua imagem. Enkidu era aquilo de que Gilgamesh não queria confrontar: o limite ou finitude de sua existência. Com seu sósia, Gilgamesh descobriu o que é a morte, sim, pois Enkidu viera a falecer depois de um confronto com o dragão mandado pelos deuses. Gilgamesh, cheio de hybris, faz a jornada em busca da imortalidade, mas como podemos concluir, mãos vazias foram sua paga. Alguns historiadores e mitólogos fazem paralelo de Gilgamesh com inúmeros reis locais da antiguidade mesopotâmica, sendo fonte de inspiração para Ninrode, o rei caçador do Antigo Testamento.
O segundo personagem heróico que cai em desgraça pelas garras da hybris é Aquiles. Nas epopéias troianas, Aquiles e retratado por Homero como um herói cheio de adjetivos, dentre eles a invulnerabilidade e o fato de ser semi-deus (filho de Tétis, deusa do Mar e do rei Peleu, de Mermela), embora tivesse sua mãe esquecido de banhar seu calcanhar no rio estige, crucial para o seu derradeiro fim. É bom esclarecer que na escrita homérica não havia a necessidade da esplicação de que um ou outro personagem era ou deixava de ser alguma coisa, pois seus nomes acompanhavam os respectivos atributos, logo, se você ler o clássico você já percebe de cara quem é o que na história. Náo existia verbo de ligação, logo Aquiles herói, Paris covarde (e etc e tal).
Voltando ao herói homérico Aquiles, o que é dito desse semi-deus é que ele era um herói que lutava pelo exercito de Menelau e Agamenom, reis gregos (ou Helênico, isso mostra a importância desse mito na formação da cultura grega), contrapondo-se à Heitor, herói troiano, mortal, que lutava pelos seus. O estopin dessa contenda foi o rapto de Helena (a iluminada pelo Sol ou Helios) por Paris Alexandre, principe troiano e juiz no episódio do Pomo da Discórdia, pacto com a deusa do amor Afrodite pela proclaração da divindade mais bela do panteão helênico, para o descontentamento de Palas Athena e de Hera, coicidentemente patroa de Tétis, mãe de Aquiles coração de Helena, em troca do amor de Helena por ele.
No confronto entre Aquiles, o invulneravel e Heitor, o mortal e irmão de Paris, também herói, ambos lutavam por pontos de vista contrários: os respectivos interesses nacionais. Previsivelmente, Aquiles venceu Heitor, mas possuído de hybris, manchou sua vitória negando ao herói troiano um enterro digno de tal porte e coragem, esquartejando seu corpo e arrastando ao redor da muralha da cidade, para sofrimento e desespero de seus familiares. Algo como um capitão Nascimento negando um belo enterro ao traficante Baiano. A desgraça de Aquiles não foi a flecha envenenada em seu calcanhar, foi a hybris em campo de batalha ou refrear seus impulsos diante de uma batalha homem a homem.
O terceiro herói que me ocorre, enquanto escrevo, vem das fábulas arturianas, uma miscelânia de lendas celtas, romanas, anglo-saxãs e normandas, de carater pagão e cristão que se perde na origem e no tempo. Como os primeiros textos sobre as lendas arturianas e o reino fictício de Camelot (ou Cameloot, anagrama notaricon de Malkut, o reino em hebraico) foi escrito em francês, e um heroi de orgiem franco-normanda recebia todo o destaque nessa edição: o cavaleiro da carruagem, o cavaleiro Branco Lancelot du Lac. Seus feitos e proesas ultrapassavam a descrição, sendo considerado por Arthur seu maior e mais valoroso dos cavaleiros da távola redonda, cuja missão era relembrar os feitos arturianos e ir à busca do cálice sagrado, ou Graal. Cobiçado pelas mulheres do reino e estrategicamente requisitado por Arthur, Lancelot foi acometido de um feitiço pagão que o fizera tomar decisões intempestivas, dentre elas o casamento mal fadado com a princesa de Listenoise, reino de Pellinore, seu pai e conseguinte, encontros furtivos com a rainha Guinevere, esposa do Rei Arthur, a quem Lancelot jurou fidelidade.
Não foi a traição o motivo da queda do herói mais valoroso da távola redonda, mas a hybris, neste caso insuflado pelos feitiços de Morgana Le fey, a quem se atribuí a morte de Merlin, feiticeiro e conselheiro do Rei e de gerar Mordred, filho de sua estratagema para tirar o poder real de Arthur. Por feitiçaria ou por orgulho insuflado, a queda é a destruição da virtude. Uma curiosidade sobre a influëncia do mito de Lancelot: sua imagem foi perpetuada no baralho de cartas figurando o Valete de espadas, centrado no mito da famosa Escalibur, segundo algumas interpretações correntes, enquanto outras o atribui ao naipe de ouro, associando-o à Camelot, o Reino.
Mas, enfim, o que tem haver a hybris com o aikido? Essa pergunta está presente na condução de tarefas simples que usamos em nossos exercícios e nem sempre nos damos conta dela. Não é necessário aprender japonês ou virar samurai para perceber que a disciplina que o aikido transmite vai muito além da melhoria postural e da ausência de força bruta nos movimentos. O tai sabaki (movimentação corporal, tradução livre), por exemplo, transmite-nos a necessidade de conduzir nossos corpos e mentes para uma direção ou mudarmos nossa postura frente a conflitos desnecessários. Não cabe, no espaço da academia, exercitar algo parecido ao “shin sabaki” (tradução livre para movimentação do espírito), mas podemos evitar um preconceito acerca daquilo que não nos é interessante ou familiar. Agir de forma bruta frente aos problemas relacionais cotidianos, ignorar o impacto das diferenças como transformador cultural e social e apelar para soluções violentas quando existe lugar para uma conversação é como estar imerso na hybris e não ter parâmetros outros senão agir pela sobrevivência (do ego). Contudo, em hybris a queda é iminente e nenhum rolamento ou técnica para tal (ukemi) lhe será válido, pois o chão não está aos seus pés, o ego insuflado distorce sua imagem e a queda elimina qualquer possibilidade de aparo. Compartilhamos da mesma condição humana: a imperfeição. Aprimoremos nossas técnicas e incorporemos seus ensinamentos na sutileza do manuseio com ego. Isto é um convite e uma tarefa heróica.
Leonardo Galvão é artista e tecnólogo, praticante de aikido a cerca de 3 anos.