Morihiro Saito Shihan (Aikidai 9º dan) começou a praticar Aikidô em 1946 com o Fundador do Aikidô, Morihei Ueshiba, no Dojo de Iwama. Este ano marca o 50º aniversário de sua dedicação à prática da arte do Aikidô. Ele publicou muitos livros, incluindo os 5 da série clássica Traditional Aikido, e ele aparece em vários vídeos.
Entrevista com Morihiro Saito Sensei por ocasiao de seminario realizado no dojo de Gaku Homma sensei, em Denver, Colorado.
Gaku Homma praticou Aikidô por mais de 30 anos e é o Fundador do Nippon Kan Culture Center em Denver, Colorado. Ele é o autor do Aikido for Life e outros livros sobre Aikidô e cultura japonesa.
Parece que em toda etapa importante da minha vida, Saito Sensei estava lá. Ele estava em Iwama durante os anos em que eu fui um uchi deshi com o Fundador, Morihei Ueshiba. Seis anos após a morte do Fundador, Saito Sensei Atendeu ao meu convite, para uma demonstração em um clube de Aikidô na Base da Força Aérea de Misawa, onde eu organizava uma demonstração que me deu a oportunidade de vir aos Estados Unidos pela primeira vez. Agora, 20 anos mais tarde, em outubro de 1995, eu tive a oportunidade de convidar o Saito Sensei para lecionar no Aikido Nippon Dan em Denver, Colorado.
Parece um piscar de olhos o tempo passou tão rapidamente. Eu me lembro de experiências do passado com se tivessem acontecido ontem. Eu tenho 45 anos agora, e o Saito Sensei 67. Conforme o tempo passa e nós envelhecemos, eu acho que o nosso temperamento e nossos valores mudam, tornando-nos mais tolerantes e no geral mais aceitáveis. Durante o nosso seminário, enquanto eu tomava conta do Saito Sensei e observava-o ensinando, eu claramente percebi o quanto o tempo passou, e quantas lembranças eu tenho.
Como Saito Sensei ensinou, eu nunca o ouvi falando sobre forças universais, Deus, auras, paz ou Ki . E eu nunca o ouvi fazer quaisquer outras referências cósmicas. Em cada um de seus movimentos, seu corpo mostrava os sentimentos que essas palavras lutam para capturar. Essa força de tocar o coração das pessoas através da eloquência de seus movimentos é o que o
diferencia dos outros. Sua técnica física e a sua filosofia são simples e plantadas firmemente no solo. Quem ele é e o que ele ensina são baseados no realismo, não em conceitos ilusórios que podem ludibriar e confundir.
Conforme eu entrevistava Saito Sensei, não pude conter o sentimento de estar ouvindo um pai envelhecendo, passando a sabedoria de sua experiência para as futuras gerações.
Saito Shihan, você é muito saudável. Qual você acha que é o segredo da sua boa saúde?
Agora eu tenho 67 anos. No Japão isto me torna elegível a participar de atividades em grupo de cidadãos seniors. Eu recebo muitos folhetos e convites para participar de atividades de cidadãos seniors da cidade de Iwama. Eu não me sinto pronto para isso, entretanto. Qual é o segredo da minha saúde? Não há segredo realmente. Eu não como muita carne e comidas gordurosas. Eu como alimentos com muita fibra. Ir às turnês de seminários é uma boa chance para perder um pouco de peso; eu geralmente não como muito quando estou viajando. Denver foi uma exceção, entretanto. Comer as refeições que Honma-kun preparava para mim estimulava meu apetite. (Kun é um sufixo que indica familiaridade). Se eu tivesse um segredo para a boa saúde, seria manter-me ocupado.
Eu tento criar uma situação bem ocupada para mim, mantendo todos os dias cheios de atividades positivas. Meu motto diário é, a cada passo que dou, deve ter uma outra tarefa esperando para ser realizada. No mesmo dia em que eu estiver voltando desta turnê pelos Estados Unidos, eu viajo para o norte de Honshu para fazer uma demonstração no Tohoku Regional Aikido. Durante o tempo em que morei no Aiki Shrine Dojo em Iwama, todos te chamavam de Mou-chan de Iwama (mou é uma abreviação de Morihiro, e chan é um termo carinhoso) ou Napoleão de Iwama.
Por que você tinha esses apelidos?
Desde que eu me tornei um uchi-deshi no dojo de Iwama até a morte do Fundador, eu era um jovem muito ocupado. Durante o período que eu era um uchi-deshi, eu também trabalhava para a Japan National Railroad. O único tempo que eu tinha para mim mesmo era na viagem entre o dojo e a estação de trem e a volta. Mais que isso, eu não tinha tempo para mim. Minha vida consistia em trabalhar e praticar. Eu não podia ouvir música ou seguir os esportes da moda como os garotos da minha idade.
Às vezes eu trabalhava no turno da noite nas ferrovias e então os meus dias e noites se misturavam. Se eu quisesse ter um tempo extra para fazer alguma tarefa pessoal como arrumar meu uniforme, por exemplo, eu tinha que diminuir minhas horas de sono. As pessoas da cidade costumavam dizer “Napoleão precisava apenas 3 horas de sono em seu cavalo. O mou-chan de Iwama precisa de apenas 30 minutos de sono para estar pronto para trabalhar de novo. Eventualmente, o nome Napoleão pegou e virou meu apelido. Meu corpo não esqueceu aqueles tempos e eu ainda estou ocupado!
O apelido mou-chan também traz de volta memórias. Eu não fiz isso acontecer, mas por alguma razão as pessoas da cidade de Iwama e das áreas ao redor tinham medo deste nome. Todos conheciam e isto tinha um estigma. Se algum dos Yakuza da vizinhança ou garotos da região tentassem causar algum problema em Iwama, a menção do nome mou-chan geralmente os pararia. Isso foi uma grande surpresa para mim. Um dia, antes de um festival acontecer na cidade de Iwama, os garotos da região começaram uma briga com um grupo rival de uma cidade vizinha. Aparentemente o grupo rival queria pegar o espaço de venda para o festival e os garotos pensaram que isso poderia ser oportuno para invadir o território de Iwama. Eles reuniram o grupo e se aventuraram para dentro de Iwama com a Yakuza na liderança. Um dos jovens de Iwama veio até mim e pediu minha ajuda para separá-los dos seus rivais. À princípio eu recusei, pois não queria me envolver nas brigas pessoais deles. Mas, sendo jovens e não conhecendo o significado do medo, eu concordei em ajudá-los. Vestindo botas de couro para proteger meus pés e uma jaqueta pesada de couro para me proteger de um ataque de faca, eu saí para ajudá-los. Eu fiquei surpreso quando cheguei no local. Eu não tinha idéia de quantas pessoas haviam se juntado na rua, prontas para brigar. Não sabendo o que mais fazer, eu andei diretamente entre os 2 grupos e disse “lutar em um dia de festival shrine não é bom”. O chefe rival deu um passo e perguntou: “Ei, você, jovem, quem é você?” “Eu sou Saito” – respondi. Mas isto causou pouco impacto. Depois alguém de Iwama gritou: “Ele é o Mou-chan de Iwama”. Nisso, o chefe rival ajoelhou-se, abaixou a cabeça até o chão e desculpou-se. Eu disse aos garotos de Iwama que começaram a brigar para se desculparem também. Então eu reuni os líderes de ambos os grupos e levei-os até um bar local de sakê.
Conversando com os garotos de Iwama disse severamente: “qualquer um que começar uma briga está errado e deverá remediar a situação servindo saquê para aqueles que eles machucaram. Conserte esta situação agora!” E depois disso saí. A maioria das pessoas da cidade conhecia o meu nome, mas não o meu rosto, já que eu estava ocupado trabalhando o tempo todo. Como eu praticava Aikidô, minha reputação parecia crescer no seu próprio acorde. Eu era frequentemente chamado para resolver disputas menores, mesmo antes da polícia ser chamada. Eu ainda não tenho certeza se a minha reputação era boa ou ruim. Claro eu não tenho mais uma reputação deste tipo. Aqueles dias eram muito diferentes de hoje. Os tempos eram mais inocentes, especialmente no campo.
Parece que você ainda é o Napoleão de Iwama. Durante esta turnê de seminário, em um período de 2 semanas, você viajou dos Estados Unidos pro Japão, ensinou em ambas costas leste e oeste e então veio a Denver sem nenhum descanso intermediário. Parece uma programação extenuante para mim. Como você vê, o que faz a vida válida?
O que me deixa mais feliz é ensinar o que eu herdei do Fundador. Eu tenho uma grande realização quando visito os meus alunos por todo o mundo, podendo ficar na casa deles, ensinando e praticando juntos.
Quando eu estou em casa, em Iwama, se houver um pouco de tempo extra, eu aproveito ficando no Aiki no Ie (casa do Aiki) sentado ao redor da irori (fogueira) com outros amigos, comendo e bebendo juntos. Este é um momento feliz para mim. Num dia como estes, o que eu mais gosto de fazer é cozinhar. Eu não sou uma pessoa que fica beliscando, mas eu tenho um estilo único quando estou cozinhando. Por exemplo, eu gosto de fazer meus próprios temperos com os chillies que planto no meu jardim. Eu tenho um jeito especial de juntar os chillies com óleo de gergelim. Tem que ser assim. Eu também gosto de fazer o meu próprio udon (macarrão de farinha branca) e soba (Macarrão buckwheat). Eu gosto de secar e moer os grãos, fazer a massa e cortar o macarrão sozinho. Meu filho Hitohiro tem seu próprio restaurante de soba, então eu tenho uma fonte de trigo sarraceno fresco. Eu não gostaria de dizer a mim mesmo, mas eu acho que meu macarrão tem
uma reputação muito boa.
Eu também gosto de ir ao hinoki furo (casa de banho) para relaxar. Eu não posso descrever o quanto me faz sentir bem.
Eu já sou avô: eu tenho 13 netos. Mas, eu acredito que para pessoas que possuem seus próprios dojos, não há aposentadoria. É meu destino continuar.
Eu sinto que é minha obrigação ensinar o Aikidô do Fundador para o máximo de alunos possível. Quando eu morrer, uma ligação direta com a técnica dele irá desaparecer.
Eu recebi um presente de 23 anos de experiência com o Fundador. O que eu aprendi, eu aprendi com ele, e o que eu aprendi eu me sinto na obrigação de ensinar.
Outros shihans têm liberdade, eu não tenho. Há shihans espalhados por todo o Japão e por todo o mundo, que em certo ponto, reuniram-se com o Fundador para praticar. O fundador entendeu a essência do Aikidô, e guardou na palma da sua mão. Aqueles que se juntaram rapidamente nunca realmente alcançaram o dom que o fundador manteve em sua mão, e então eles se foram.
Iwama é para os Aikidoístas o que por exemplo Meca é para os muçulmanos, ou o Vaticano é para os católicos. Metaforicamente, Iwama é um farol, e é minha obrigação manter sua luz brilhando claramente. Para outros Shihans, o farol simboliza os grandes empreendimentos e conquistas do Fundador. Eles usam essa luz para iluminar seus caminhos enquanto navegam livremente em
barcos que eles mesmos construíram.
Enquanto esta luz continuar a brilhar em Iwama, as raízes do Aikidô continuarão a existir. Eu acredito que é muito importante não esquecer este ponto. Eu comecei no Iwama Dojo em 1946. Até a sua morte, eu passei todos os dias durante 23 anos com o Fundador. Desde a sua morte, eu tenho ficado em Iwama, mesmo tendo uma posição de Shihan no Aikikai Hombu Dojo. Eu tenho dedicado todos os dias em manter a luz brilhando claramente no farol deixado pelo Fundador.
Eu tenho escutado que alguns Aikidoístas distinguem as técnicas do estilo de Iwama das do Aikidô mais moderno, chamando o estilo Iwama de tradicional e até antiquado. Na minha opinião, isto é um erro. Eu acredito que se nós negamos as origens de nossa própria prática, nós negamos sua validade..
Quando as pessoas dizem que o estilo Iwama de Aikidô é antiquado, eles me fazem lembrar de pessoas cortando o galho de uma árvore, enquanto eles estão sentados no proprio tronco sendo serrado.
Eu nunca diria que o estilo Iwama de Aikidô é o único válido. Cada instrutor tem a sua própria personalidade que é construída com base na sua própria bagagem cultural e no ambiente. É natural que estilos diferentes e organizações diferentes tenham sido desenvolvidas. Ter viajado por todo o mundo me ajudou a entender isso, já que eu estive em contato com muitas pessoas, lugares e culturas diferentes. Eu acho que é bom para os alunos aprenderem com vários instrutores e praticarem em vários dojos diferentes.
Entretando eu também acredito que é vitalmente importante praticar as técnicas da fundação do Aikidô. Nós não podemos esquecer a fonte de nossa prática.
Nas vidas das pessoas, geralmente chega um momento em que elas refletem sobre as suas próprias raízes e heranças. Eu acho que é importante para cada um de nós incluir um estudo das técnicas do Fundador conforme viajamos em nossa própria jornada do Aikidô. Nossa ligação mais próxima à fonte é o Fundador, Morihei Ueshiba, e a ligação mais próxima à ele é o Iwama Dojo. É importante para a comunidade do Aikidô que mais pessoas percebam que as raízes da nossa prática estão com o Fundador. É importante passar pelos grandes acontecimentos e conquistas do Fundador corretamente mesmo se for feito por uma pessoa de cada vez.
Por esta razão, eu mantenho a luz do farol acesa e brilhante em Iwama. É por isso que eu não tenho liberdade. Ao invés de liberdade eu tenho o meu destino e eu gosto disso. Mantendo o dojo do Fundador vivo e bem é o que faz minha vida válida.
Eu sei que faz muito tempo, mas você poderia nos contar como era sua época como uchi-deshi no Iwama dojo? Eu ingressei no Iwama Dojo em 1946. Isto foi logo após o Japão ter perdido a guerra, e não havia muitos recursos disponíveis: era uma época de muita pobreza. Nascido e criado na cidade de Iwama, eu ingressei no dojo com 18 anos.
Não muito mais tarde, alguns dos uchi deshi do Hombu Dojo vieram a Iwama.
O Sr. Gozo Shioda (fundador do Yoshinkan Aikido) mudou-se para lá com sua família de 6 pessoas (o que me deixou um pouco surpreso). Eles ficaram por aproximadamente 2 anos. O sr. Koichi Tohei (fundador do Ki Aikido) também chegou na mesma época após ser dispensado do serviço militar.
Eu me lembro de estar pensando naquela época se a guerra havia tornado ele alguém firme e forte. Ele deixou o dojo quando se casou. E havia outros dois estudantes que se tornaram uchi deshi na mesma época que eu. Um deles desde então se tornou um diretor regional de educação, e o outro é hoje um membro do parlamento. Eu sou o único que restou ainda por Iwama! (risadas) É difícil imaginar a aparência de Iwama naquela época. Onde agora você vê casas, havia acres de madeira selvagem. Nenhuma das ruas era pavimentada, e quando chovia elas ficavam com muita lama. Nós usávamos geta (sandálias de madeira) com uma das bases da sandália sobressaindo do chão, uma vez que a lama ficava presa entre as bases de um geta normal de duas bases, tornando-os muito pesados. O geta de base única era melhor para caminhar na lama, e no chão seco eles eram úteis para desenvolver equilíbrio e coordenação! Nós usávamos pouca eletricidade, especialmente nas áreas ao redor do dojo.
A noite era tão escura que alguém poderia encostar em você e você não saberia quem era! O Fundador era um membro proeminente da comunidade e se diferenciava por possuir a única energia elétrica da área. O contraste entre a escuridão total e as luzes brilhantes do dojo à noite faziam o lugar parecer mágico. Mais tarde, quando minha casa foi construída, nós puxamos eletricidade da casa do Fundador para a minha casa. Naquela época, isso era considerado um luxo.
O pessoal da cidade achava que o que acontecia no dojo do Ueshiba-san era um pouco incomum. Por exemplo, a maneira que nós, os uchi deshi nos vestíamos causava muito olhares surpresos à medida que andávamos pela cidade. Nós vestíamos o keiko gi ( roupa de treino,puída e remendada no colarinho), hakama desbotado (mais curto que o de hoje, na altura do tornozelo), e haori (parte de cima do kimono porém curto) decorados com padrões batik. Usávamos jo de ferro para tornar nossos bracos mais fortes, balancando-os e girando-os fazendo barulho atrás de nós conforme andávamos. As pessoas da cidade eram conhecidas por dizerem que nunca deixariam seus filhos irem à casa do Ueshiba-san por qualquer motivo. Como uma advertência, os pais ameaçavam seus filhos preguiçosos que, se eles não entrassem em forma, eles seriam mandados para o Ueshiba-san (risadas). Eles costumavam nos chamar de bankara (um grupo de aparência forte e ameaçadora). Ouvindo a fofoca local, o Fundador nos alertaria com um sorriso para não amedrontar muito as pessoas da cidade.
Alguns anos após o final da guerra, a vida começou a voltar ao normal. O pais ainda estava em transição e havia muitas pessoas desempregadas. Muitos se associaram ao dojo de Iwama em busca de uma nova chance na vida. Embora houvesse uma horta no dojo, de repente haviam mais bocas para alimentar do que a nossa capacidade. O Fundador colocou os novos uchi deshi para trabalharem limpando os campos ao redor, para que pudessem ser plantados.
Os campos eram cobertos com uma densa plantação de bambu, cujo emaranhado de raízes tornavam o trabalho de capinar e limpar a área extremamente desgastante. Alguns dos novos aprendizes acharam que o trabalho era muito duro, juntaram-se e desapareceram na noite. O trabalho era duro para mim também, mas mesmo que eu quisesse fugir não havia outro lugar para ir uma vez que nasci e fui criado em Iwama. Na realidade, ainda não saí! (risadas) Após o incidente com a limpeza dos campos, o Fundador diminuiu as tarefas difíceis.
A área do dojo onde nós agora praticamos boken e jo é onde o Fundador e sua esposa tinham a sua horta particular. Em outros campos maiores havia plantações de batatas, amendoim, e arroz. Atualmente tenho uma pequena horta que considero um hobby. Somente alguns uchi deshi selecionados têm a permissão para trabalhar na horta. Na verdade a maioria dos uchi deshi são explicitamente proibidos de trabalharem na horta. Quando eles trabalham, apenas resulta em mais trabalho para consertar o que eles fizeram. O último uchi deshi que trabalhou nas hortas foi você, Homma-kun, e a empregada do Fundador, Kikuno-san. Eu me lembro de você com um monte de vegetais preso às suas costas quando você foi ao Hombu Dojo de Tóquio para acompanhar o Fundador e sua otomo (assistente). Após a morte do Fundador não houve nenhum outro uchi deshi que trabalhase especificamente nas hortas.
Eu me lembro também. Naquela época eu tinha apenas 17 anos. Aqueles dias foram difíceis. Depois que o Fundador terminava sua cerimônia matinal diária, eu o acompanhava até a horta para pegar os vegetais que seriam usados nas refeições do dia ou, se houvessem extra, para levar ao Hombu Dojo, em Tóquio. Falando do Hombu Dojo eu li muitos artigos e livros sobre a história do Aikidô escrita pelos uchi deshi do Hombu Dojo. Mas, quando eu acompanhei o Fundador em Tóquio, não havia nenhum uchi deshi morando no Hombu Dojo. Você poderia esclarecer isto? No final da guerra, haviam muitos uchi deshi morando no Hombu Dojo. Na sua maioria, aquelas pessoas estão muito velhas ou já morreram. Depois que a guerra acabou, o Fundador morou na maior parte em Iwama, e ia à Tóquio apenas para cerimônias especiais ou eventos Da última geração de estudantes que deveriam estudar diretamente sob a orientação do Fundador, muitos dos que diziam ser os uchi deshi do Fundador eram na verdade 2º e 3º dan Shidoin (instrutores assistentes) no Hombu Dojo. A maioria recebia o equivalente a aproximadamente 200 dólares de salário mensal, moravam em apartamentos baratos perto do dojo, e iam ao dojo somente para praticar. Estes kayoi deshi (estudantes que moravam fora do dojo) não cuidavam do Fundador. Exceto quando eles estavam ajudando-o como UKE, os kayoi deshi não poderiam ficar próximos à ele. O Fundador exigia este nível de respeito.
Muitos agora dizem que eles ficavam próximos ao Fundador, mas não era realmente o caso. Mais tarde na vida do Fundador, pouco antes dele morrer, mesmos os shihans melhor posicionados no ranking somente poderiam oferecer cumprimentos. Eles não estavam nem na posição de conversar com ele. O Fundador não queria ter muitas pessoas à sua volta, e havia realmente poucas que pessoalmente cuidavam dele.
Quando falamos daqueles que cuidaram do Fundador na sua vida particular não podemos esquecer sua esposa. Você poderia nos falar um pouco sobre ela? Em 1951, o Fundador limpou a terra onde hoje está a minha a casa. Nós construímos a casa juntos. No jardim há uma castanheira que o fundador plantou. Desde que eu era um uchi deshi, era esperado que eu serviria o Fundador. Minha mulher não era uma aluna do Fundador e então ela não tinha a mesma obrigação. Mas ela trabalhou ainda mais duro que eu para cuidar do Fundador e sua esposa. Eu ia trabalhar todos os dias, portanto não ia sempre ao dojo. Minha mulher trabalhou 24 horas por dia durante 18 anos cuidando dele. Ela cuidou tão bem deles, que se por alguma razão ela não podia estar lá, Hatsu, a esposa do Fundador teria problemas em saber onde as coisas estavam.
Uma vez Hatsu adoeceu e teve problemas com a voz. Minha mulher conseguiu entender o que ela tentava falar apenas observando sua boca. Isso mostra quanto tempo eles conviveram.
Eu recebi promoções e reconhecimentos de dedicação do Hombu Dojo, mas minha mulher é a pessoa que merece a maioria dos créditos no que diz respeito aos cuidados oferecidos ao Fundador e à sua esposa. Somente minha mulher podia conversar com o Fundador diretamente, dando-lhe conselhos e oferecendo suas opiniões.
Além de cuidar do Fundador, ela também cuidava de nossa própria família e incontáveis uchi deshi por vários anos. Eu admiro muito a minha esposa.
Eu me lembro de sua esposa muito bem. Ela sempre soube quando aparecer com uma tigela de arroz cheia. Como você disse, se o Fundador estivesse bravo e sua esposa aparecesse, o humor do Fundador mudaria milagrosamente para o de uma criança feliz. Isso sempre me espantou.
Pouco antes do Fundador ir ao hospital em Tóquio, os efeitos de sua doença estavam no seu pior momento. Nós todos nos sentimos muito tristes por ele, mas era difícil nos aproximarmos dele. Foi triste ver um grande artista marcial perto do seu fim.
Foi uma época dificil para você também, Homma-kun, já que você cuidava dele pessoalmente. O temperamento do Fundador era imprevisível. Se ele estivesse mal humorado, quando você o encontrasse ele o envolveria com o seu mau humor.
Durante o último ano de sua vida, ninguém de Tóquio visitou o Fundador, porque eles não queriam se envolver. Foi uma época muito tumultuada para o Fundador. Deve ter sido muito dificil para vocês dois, Homma-kun e Kikuno-san, uma vez que vocês eram muito jovens.
Sim, foi uma época difícil. Talvez foi porque nós éramos tão jovens que o Fundador se sentia confortável e conversava conosco, mesmo próximo à sua morte. Falando de eventos recentes, Sensei, o que você achou do seminário aqui em Denver? Fiquei surpreso que mais de trezentas pessoas se registrassem para os três dias de seminário. É realmente bastante gente! Foi bom ver um seminário que não ofereceu “atrativos” tais como exames de faixa, etc. O fato de um dojo independente como o Nippon Kan conseguir atrair tantos estudantes do mundo inteiro para um seminario próprio é muito bom. Eu percebi que houve participantes de 17 organizações diferentes e de outros dojos independentes.
Eu estou muito contente de tantos estudantes comparecerem. Acho que o Fundador lá no céu deve estar contente também.
A comunidade de artistas marciais, incluindo a comunidade do Aikidô, enfrenta um futuro no qual mais e mais grupos se tornarão independentes especialmente nos Estados Unidos e Europa. A organização do Fundador, o Aikikai, precisa prestar atenção nisso. Acredito que em vez de eles se concentrarem em fazer mais regras e restrições, seria melhor se eles reconhecessem e respeitassem organizações independentes. Isso abriria o caminho para um relacionamento mais forte e um futuro mais estável.
Ir além de diferenças de organizações e estilos cria uma oportunidade maravilhosa para as pessoas se encontrarem, como demonstra esse seminário. A filosofia de harmonia e amor do Fundador se manifestou nesse seminário. Eu ficaria muito feliz de viajar para qualquer lugar para ensinar em seminários como esse. Essa é a minha missão. Você, Homma-kun, não é afiliado ao Aikikai ou com o estilo Iwama de Aikidô. Mas não há problema nisso. O fato de um dojo independente como o Nippon Kan conseguir reunir mais de 300 pessoas não pode passar despercebido. Seus alunos devem se sentir orgulhosos da estrutura própria do dojo e da reputação que ganhou através das contribuições à comunidade. Eu não acho que seja necessário transferir os seus sucessos para uma outra organização.
Pessoalmente eu espero continuar a ser um conselheiro e a dar suporte ao Nippon Kan. Como eu prevejo mais dojos independentes no futuro, eu quero que o Nippon Kan sirva como um exemplo a ser seguido. Eu tenho as mais altas expectativas no seu papel como um dojo independente e estabelecido.
Muito obrigado, Saito Sensei. Durante o seminário eu escutei as pessoas dizendo que “o estilo de Aikido Iwama é muito mais acessível que eu pensava.
Eu pensava que o estilo do Saito Sensei fosse mais estrito e severo.” A minha maneira de ensinar significa ter uma prática alegre que demonstre claramente a instrução do dia, para que os alunos possam entender inteiramente e levar o ensinamento para casa. É claro que eu sempre quero uma prática sem acidentes ou machucados. Quando eu ensino, e sinto que minhas explicações serão longas, eu peço aos alunos para se sentarem. Se há muita gente, peço para as pessoas que estão atrás para ficarem em pé para que possam ver. Eu tento me mover ao redor para que todos tenham uma chance de ver claramente. Eu procuro explicar devagar e claro. Não estou interessado apenas em jogar ukes ao ar.
Somente esse ano, eu viajei para fora do país três vezes. Somando tudo, já conduzi seminários fora do Japão mais de 50 vezes. Francamente não sei por quanto tempo ainda vou continuar ensinando pelo mundo todo. Se minha saúde continuar boa, eu sinto que preciso prosseguir minha missão de testemunha da obra do Fundador.
Eu me sinto feliz em ter estudantes maravilhosos ensinando e praticando ativamente nos Estados Unidos e em todo o mundo. Eu peço aos meus estudantes para continuar minha filosofia. Por causa dos esforços deles, as pessoas do mundo inteiro viajam para Iwama para treinar como uchi deshi.
“Recebi uma benção de 23 anos de experiência com o Fundador. O que eu aprendi, eu aprendi com ele, e o que eu aprendi me sinto na obrigação de ensinar.” Em certas ocasiões, eu soube de estudantes que praticaram em Iwama e retornaram aos seus países só para causarem problemas com outros grupos de Aikidô. Isso me preocupa, porque essas pessoas obviamente não compreenderam totalmente o treinamento que receberam em Iwama. Eles transmitiram essa falta de compreensão à medida que representaram erroneamente o estilo Iwama do Aikidô para outras pessoas. Isso nunca foi minha intenção. É importante que trabalhemos bem e de uma maneira amigável dentro da comunidade do Aikidô.
Hoje em dia eu viajo com o meu otomo, mas houve épocas em que viajei sozinho. Uma vez, quando cheguei em um aeroporto nos Estados Unidos, não havia ninguém lá para me receber. Como não sei falar inglês, foi um problema! Por minha sorte, um grupo de turistas japoneses passou por mim, e eu os segui para sair do aeroporto. (risadas). Eu não esqueço as vezes em que carreguei minha panela de arroz na mala, cozinhando para mim mesmo nas viagens. Eu nunca imaginei que eu estaria aqui, sentado na casa de Homma-kun comendo comida japonesa em Denver, Colorado.
Foi uma honra e um prazer, Sensei. Muito obrigado.
Após sua chegada em Denver, a primeira pergunta que Saito Shihan me fez foi “Que técnica eu devo ensinar essa noite?”. Depois de cada aula, ele perguntava se a aula havia sido adequada, e se uma certa série de técnicas seria apropriada para a próxima classe. Eu fiquei impressionado pela atitude dedicada e profissional dele.
Depois do treinamento, na sala de espera, Saito Sensei agradecia a todos pelo comparecimento, e oferecia frutas e refrigerantes. Foi um prazer ver tanto calor e gentileza demonstrado por um homem da posição dele. Um sentimento de generosidade permaneceu em sua volta durante o seminário inteiro.
Durante a festa de encerramento, nós acompanhamos Saito Sensei ao lavatório e esperamos ao lado da pia para lhe dar uma toalha para secar suas mãos. Eu me emocionei ao vê-lo cuidadosamente limpar a pia que havia sido molhada por outros, como uma cortesia ao próximo.
Original: Site Nippon Kan org – Gaku Homma Sensei